segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Concerto de João Gilberto no Cine-Theatro Central

 No dia 14 de novembro de 1996, eu, que tinha me mudado para Juiz de Fora há seis anos, tive a honra de com quinze anos de idade assistir a dois grandes eventos em um, que me ajudariam para sempre no meu percurso entre a música e a literatura. Nessa data, finalmente seria reinaugurado o maravilhoso Cine-Theatro Central, que já conhecia antes da restauração em plena decadência. Não bastando, a atração da grande noite seria ninguém mais ninguém menos do que João Gilberto, acompanhado apenas por seu violão. Nessa altura da vida, o violão já era o mais fiel escudeiro nos meus sonhos quixotescos e João, para mim, representava a mais alta patente da música popular brasileira. A mais justa adequação entre voz e violão, no melhor repertório, na melhor interpretação.
Inacreditável, ele estaria lá, e o nosso teatro, devidamente restaurado, também estaria lá pronto para recebê-lo. Mais um dado me vem à memória e, dada a impossibilidade de se acompanhar até mesmo os espetáculos mais mesquinhos que se passam atualmente no nosso teatro por conta do valor dos ingressos, não resisto de vontade de contar: 10 reais, preço único.

Os camarotes ficariam para a realeza, composta basicamente por tucanos que dominavam o cenário político atual, no âmbito municipal, com Custódio Mattos, e federal, com Itamar Franco e o tucano Fernando Henrique Cardoso que ocupara o ministério da fazenda em 1994, quando obteve enorme sucesso com o lançamento do Plano Real que estabilizou a economia brasileira afastando qualquer risco de super-inflação a qual já nos acostumávamos. Claro, nem só tucanos, basicamente a alta burguesia da cidade - que mais do que definida, mantém-se pragmática - o que se prova facilmente com as conquistas posteriores da oposição - ocupava os camarotes do teatro.
Muito bem, dia 14 às 20 horas estaríamos todos lá para presenciar um show de João Gilberto na província, que como já dissemos, se metia a besta, com um cidadão ocupando o mais alto cargo do executivo. Muitos pensaram que João Gilberto se atrasaria, tocaria pouco tempo, enfim, que faria um concerto bem burocrático. Parece-me que o plano da burguesia, dado o horário do show, era o de deixar para jantar depois do show. Ouviriam umas bossas novas e depois jantariam, provavelmente no extinto Faisão Dourado.
 Entra João Gilberto, já velhinho, com seu terno e seu violão eterno. E eu não pude deixar de me emocionar. Sonhara por anos pela restauração do teatro, e nesses sonhos contentava-me com concertos bem mais modestos. Porém, acontecia naquele momento, aquilo que ninguém esperava, o arredio João Gilberto que não tocava a bastante tempo no Brasil veio para fazer um show na reinauguração de um teatro de Juiz de Fora. Dezenas e dezenas de canções que João, na maestria que lhe é peculiar reinventava pari passo . Tudo virava bossa nova em suas mãos, sempre nova, cada vez mais nova, tão novas que fugiam eternamente dos corinhos da plateia que nas canções mais famosas, teimavam em tentar se ajustar a voz de João e a desrespeitar o silêncio necessário para ouvi-lo , condição sine qua non para que ele possa tocar e cantar.

Quando as luzes se apagaram e a campainha soou por três vezes, enquanto ainda me assustava com a luz da máscara de olhos vermelhos, o silêncio existiu. Quando o show iria começar eu tive receio até de respirar, tamanha era a ausência de qualquer ruído. Depois veio João e a sua música em perene harmonia com o silêncio ao qual João lhe apresentava uma alternativa literomusical brasileira acachapante. Afora os incomodos, é sempre difícil relatar um sonho. Pra relatar o sublime, só a poesia.
João tocou tudo. Do seu repertório, poucas as canções que não foram recriadas. Algumas pareciam-me inéditas em shows como No Rancho Fundo de Lamartine Babo e Ary Barroso, que conhecia apenas pela interpretação de Chitãozinho e Xororó: manhosa e tão esquisita para os meus ouvidos . João ensinou a todos a música que havia por detrás da interpretação neo-sertaneja e foi de matar de tão bonita. Eu e outros músicos, aturdidos, tentávamos acompanhar as harmonias super requintadas, mas era quase impossível. Meus colegas de Scala arriscavam que João a cada volta que a música dava, inventava uma nova harmonia para a canção, daí a impossibilidade de se acompanhar a sequência de acordes. Mas a verdade óbvia estava no fato de entender que o que se trabalha em anos, jamais será apreendido num momento. Entendido isso, só me restava ouvir, aquilo tudo que eu tanto precisava escutar. Quase levitava.

Quando a música era mais famosa, a minha vizinha de banco, conseguia me trazer pra terra e me puxava pro inferno com sua voz aguda. Mas conseguia aproveitar bem o momento e levitei por diversas vezes. O show se extendia de um jeito que nem o mais otimista dos ouvintes poderia imaginar. 

Contudo, as máscaras que serviam bem até a primeira hora de show, começaram a cair. Muitos estavam ali pelo evento, muito mais do que para ouvir João Gilberto, e uma hora de silêncio, aliada a uma hora da música silenciosa foi fatal para aqueles que prefeririam uma audição desatenta e festiva a um concerto de pura concentração e envolvimento do músico e do público. Como não podia deixar de ser: primeiro os camarotes esvaziaram. No salão principal, pessoas pareciam esconder seus rostos e saiam à francesa, para mim um alívio - a cantora ao meu lado saíu com eles. Minha única preocupação era com o João, será que ele se importaria com o abandono dessas pessoas?

Que nada, aí é que parece que ele gostou ainda mais, tocou mais uma hora e meia, fez o bis mais longo que eu já ví em toda a minha vida, sempre em altíssimo nível. A música em harmonia equiparava-se ao silêncio. Estava bom estar ali. O tempo todo do mundo para o encontro de Juiz de Fora com João Gilberto que provavelmente seria único. E eu estava alí. E não era indiferente para João tocar na nossa cidade. Muito simpático e generoso ele parecia gostar muito de estar aqui tocando para a gente. Ainda nos presenteou com uma interpretação inédita e que só ouvi nessa ocasião (apesar de procurar por toda a internet) da canção de um Juiz Forano que apesar de ter escrito o hino mais popular de Minas Gerais: "Oh! Minas gerais...quem te conhece não esquece jamais...Oh Minas Gerais", passava dificuldades no Bairro Santo Antônio. João estava sensacional. 

Por fim, tocou uma última que resumia o seu estado de graça: "só vou me embora quando o dia clarear, eu sou do samba pois o samba me criou...". 

5 comentários:

  1. Salve, Pedro! Belo texto.
    Pois bem, certa feita, um primo de meu pai que é meu primo em segundo, terceiro, quarto grau... enfim, como queira, disse-me que este famigerado Hino sobre Min(h)as Gerais, é uma paródia - lê-se nomenclatura, e você sabe do que estou falando - uma paródia que cobriu uma melodia italiana - que ironia! rsrsrsr

    Olha, adorei o texto. Fluido, claro, gostoso de ler. Fique com Deus.

    Kadu Mauad

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  2. Nesse show o João reclamou algumas vezes de um barulho, ainda que mínimo, do sistema de ventilação do teatro. Lembra disso? Algo estava vibrando fora do que ele esperava, mas não o suficiente para interromper de vez a apresentação.

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  3. Obrigado pela visita Kadu e Fernanda! Bem lembrado Kadu, conheço essa polêmica, inaugural na música popular brasileira. E fernanda: lembro sim, ainda bem que o perfeccionista João que estava generoso com o público no dia pode prosseguir. Abraços.

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  4. Belo registro de memória, Pedro. Fala de João, é claro, mas não silencia sobre e elite econômica pedantemente hipócrita, ou hipocritamente pedante.

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  5. Beleza de artigo Pedro. Você conseguiu resgatar com grande vitalidade o que aconteceu aquele lindo dia. Parabéns.

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