quarta-feira, 7 de abril de 2010

Verdade Tropical ( Parte II )

Aos poucos fui me integrando a vida romana. Meu objetivo era simples: percorrer ao máximo os caminhos da cidade e entender o mundo além dos trópicos. Gilberto Gil e Caetano Veloso tornavam-se meus mais novos heróis, o que para mim significava um grande avanço pois ainda me mirava no exemplo dos revolucionários de Cuba. Entendia com o meu livro encantado as dificuldades da esquerda marxista em lidar com questões que tocam diretamente ao corpo, à cultura e à liberdade. Muitas das questões que apareceram pra mim quando em 1995 estive por 23 dias em Cuba e que abalavam minhas convicções esquerdistas, eram repassadas nas páginas do livro de Caetano que corajosamente não me escondia nada. Das aflições da infância às experiências da adolescência, o baiano parecia me ensinar que aquilo tudo por que passava com a adolescência, não iria passar, e se passasse não seria um bom sinal, seria como se render ao mundo adulto, burocrático e burguês. Caetano narrava sua história cuja marca maior era a sensibilidade e a intensidade. O que se revelava em suas canções e no momento, para mim, se revelava no seu texto, muito intenso, com um raciocínio complicado de acompanhar, com virgulas, dois pontos, e travessões, que lhe permitiam contar, recontar, construir e desconstruir o texto, como protagonista, narrador, cancionista e escritor.

Com um dinheirinho a mais, tentei garimpar mais algum cd naquelas gavetas de música látina com preços promocionais. Achei Estrangeiro, sim! estávamos nos comunicando. Agora, conversaríamos sobre a exata condição em que eu me encontrava. Levei o album pra casa e eu não queria apenas ouvir, eu precisava devorar, para entender, para me encontrar. Já tinha lido o livro homônimo de Albert Camus, e a sensação estranha que o escritor transmitia, pairava como um espectro na minha estada na Itália, apesar da confiança que mantinha nos meus passos. Ouvia: "...E eu menos a conhecera mais a amara, sou cego de tanto vela, de tanto tê-la estrela, o que é uma coisa bela? A Bahia de Guanabara..."e era assim que pensava em Roma, na Bahia de Guanabara, na Itália. Essa era a pergunta.

E nas demais faixas do disco: a aquarela a caminhar para o azul de Rai das Cores, e as maravilhosas canções Esse Amor e Branquinha dedicadas, respectivamente a ex-mulher e a nova mulher de Caetano: Dedé e Paulinha. Só mesmo o nosso baiano muito moderno para dedicar num mesmo disco musicas para suas duas esposas. E o que mais me impressionava era a intensidade de Esse amor que ele dedicou para a ex, que com o livro ganhava a condição de musa da contracultura. A canção me emocionava, e eu pouco a entendia. O verso que dizia: "Se alguém pudesse erguer o seu gilgal em bethania" era um verdadeiro enigma, há poucos anos desvendei as palavras, o sentido...um dia chego lá, mas já entendo bastante. E nem tudo é para se entender.

Por fim, devorei o livro, que desde então, por dentro me devora. Terminando o livro lhe dei um beijo, hábito que talvez adotei com o próprio livro. Poderia voltar para a Itália, pois trazia comigo esse relato, que me relatou sem ponderações o mundo e o Brasil do ponto de vista de um artista que se entregou a eles sem medo algum. O livro me guiou pela Itália nesses primeiros dias a transtornar o meu mundo, e se desenvolveria em mim como uma semente. Os grandes livros agem assim.

3 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. A sintática-semântica de Caetano tem a ver com as ruas de Roma?

    Hoje, digito com uma mão só. Porque na outra o polegar está convalescente de um aperto que levou na porta do carro.

    Deixo um abraço e um queijo.

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  3. De um ponto de vista não, mas se considerarmos as ruas de roma como um conjunto indefinido de chegadas e partidas, bem distante das cidades modernas, planejada pelos urbanistas do século XIX. Ruas por onde podemos perder o caminho e encontrar algo ainda mais importante.
    Valeu Kadu, um grande abraço!

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