domingo, 13 de novembro de 2016

Poesia na beira de um precipício

Não fui ao lançamento de Ossos do ócio, cheguei atrasado. Mas um dia esse livro chegou até mim. Na altura, embora novo, já tinha lançado um livro de poemas  - Sonhe com os sonhos: ou o ano em que tive 18 anos. Roberta, minha contemporânea que ainda não me conhecia foi ao lançamento e eu acho que comprou um exemplar. Um dia, quando já nos conhecíamos, voltou a falar do meu livro e me perguntou se eu conhecia as poesias de seu irmão André Monteiro. Em outra ocasião, me deu um exemplar de seu primeiro livro de poemas. Li para mim e para os amigos. André tornava-se para nós uma referência literária. À sua maneira, Roberta mantinha viva a poesia do irmão que partira da cidade pra continuar seus estudos. Era ela quem nos contava das suas descobertas e dos seus êxitos pra lá de Minas Gerais. Naquele tempo em Juiz de Fora, os jovens não lançavam livros de poemas. Os livros foram ousadias inaugurais. Desde então, não tinha dúvidas: André Monteiro era para mim o poeta maior da minha cidade para a minha geração. 

Fui fazer música e canção no Banco, depois, tratei de estudar língua e literatura na Faculdade de Letras. Na Letras, pouco do espaço criado pelos contemporâneos dos trovadores elétricos do extinto ICHL. Não se distribuíam mais zines como o Urgh!. André e Anderson Pires já nos faziam falta nos idos de 2004. Saudávamos os seus sucessos acadêmicos e literários e tentávamos seguir aquela trilha que conjugava produção acadêmica e literária.

Aos poucos, fui me aproximando do André. Gostei de saber que em André, vida, poesia e produção acadêmica se conjugavam. André é antes de tudo um militante do sonho de uma vida mais plena. Sua irmã repetia um achado seu: “a vida é muita curta para ser pequena”. Atrás do mesmo sonho, superamos as expectativas. Por vezes fomos mais longe do que podíamos. No mar aberto em que ele surfava, ainda tomávamos grandes caixotes. O caminho é de cada um. Encontraríamos o nosso? 

Finalmente chega-nos uma antologia, ou melhor, uma genealogia do André Monteiro que desde o esgotado Ossos do ócio de 2001 não lançara mais nenhum livro de poesia. Nos é portanto muito esperado um novo livro do André. Atrasado, posterior a uma série de lançamentos de jovens poetas que se lançaram pela Lei Murilo Mendes, ou pelas novas editoras independentes, o livro vem com tudo. Há até mesmo espaço para relembrarmos Ossos do ócio, seu eterno retorno em nossas vidas, o momento em que “a poesia passa pela vida e descontinua a mesma“. Livro de achados preciosos de um jovem que descobre a poesia. 

Em cinco momentos, adentra-se no pensamento de André Monteiro, de fora pra dentro, da superfície pro interior, do adulto pra criança, da resposta pra pergunta. Acima, na superfície, o imediato. Em pan-flertes: escritos de esquina (2010-2013), lê-se o poeta que já entende o que é e o que não é um poema político, o que é e o que não é um pan-flerte, um poeta... Aqui também se descobre o poeta retratista, o pintor dos tipos que se arvoram grandes na nossa pequena província, o leitor crítico de Drummond, de Torquato Neto, de teoria literária e um militante de uma filosofia de vida aprendida entre a vida e a academia. André não é um poeta nascido em Juiz de Fora, mas com certeza é um poeta de Juiz de Fora, pra juiz de fora, pros que vivem aqui. Do alto de seu pensamento, o poeta escreve manifestos, contesta verdades, destrói mitos, flerta com panfletos. 

Em cima de uma prancha bem pequena, que não leva mais ninguém, enfrenta a força dos mares proibidos com a desenvoltura de quem já sabe o que quer. 

Para além do pan-flerte da primeira parte, em que o poeta surfa com altivez, regressamos ao caderninho das tormentas (2002-2005). Aqui, o poeta ainda não surfa, quase se afoga. Sabe apenas que “ao redor do buraco tudo é beira”. É minha parte preferida, onde se vê “a alegria de quem não sabe e aprende”. A alegria de quem começa a se equilibrar na sua própria prancha. Aqui, o poeta faz prosa poética em ensaios mínimos, que armam e fortalecem o mínimo eu de Ossos do ócio (1990-2000) que vem logo a seguir. Por fim, nos damos conta que o poeta mantém teso o arco da sua promessa impressa no primeiro livro.

O livro então caminha para o seu ponto nevrálgico. Chegamos enfim ao longo poema que dá nome a antologia. Cheguei atrasado no campeonato de suicídio é um manual de sobrevivência na “orquestra escura das sensações”. É o seu projeto de vida, que não furta cores, nem abismos e que não evita os riscos de uma vida em eterno devir: 

é preciso criar um modo de desviar o olhar

de todos os espelhos tristes

que nos fazem farrapos

e

mais uma vez

deixar a rocha rolar

(...)

Como velhos e valentes leões sem dentes

Não desistem de suas garras e reinos de guerra

Como crianças criam asas para os abismos

O poeta aqui nos ensina que não há porto seguro que nos faça desistir dos devires, das vontades, da alegria. É preciso criar asas para enfrentar abismos, construir pranchas e mesmo pequenino se lançar sem medo ao mar da vida. Sim, a vida e sua potência podem nos afogar, mas não há alternativa senão se deixar viver. “O suicídio é prosa/ atraso é poesia. André segue em frente, caminho para o abismo final, mas se atrasa. O atraso é o seu antídoto contra o veneno do escorpião:  “chegar atrasado é chegar sempre na hora certa/ de dobrar nosso depois”. 

Por fim, depois da afirmação de sua vontade de viver: “cheguei atrasado no campeonato de suicídio / mas ainda quero viver”,  uma ode à vida (não a morte) dos que já se foram e à vida dos que aqui estão vivos. Apesar das cicatrizes: “a festa continua/ pelas frestas da casa” em seu eterno devir, amém.

Parabéns a Laura Assis, minha contemporânea na Letras que através da sua própria editora, Aquela editora, concedeu o espaço do livro para a poesia viva de André Monteiro, que sempre irrequieta se espalhava pelos zines, no boca a boca, em intervenções poéticas em shows de música, na internet... Muita produção partilhada que não se reunia em livro algum. O seu primeiro devir, pós (e com) Ossos do ócio, vira agora um livro, e isso é mais que uma alegria. 

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