sexta-feira, 23 de abril de 2010

Maysa e Caymmi por Wisnik

Em homenagem ao amigo Kadu e a conversa que tivemos ontem sobre Caymmi, postarei mais uma palestra do professor José Miguel Wisnik em que ele analisa a canção, sucesso de Maysa, Meu mundo caiu e discorre sobre a canção que compôs em resposta a ela. Na mesma palestra, o autor nos brinda com uma leitura primorosa de Coqueiro de Itapoã do mestre Dorival Caymmi.

Reserve uma hora especial para esta palestra de encher os olhos e assista.
Abraço grande a todos!



5 comentários:

  1. “Um belo dia, eu vinha da Mayrink Veiga, no bonde do Grajaú, Com Aracy de Almeida, que estava de bom humor, e saltou na Barão de São Francisco. E tinha o Paulo Gracindo, que morava também no Grajaú. O ônibus vazio, a gente mais para a cozinha do ônibus, ela me achou, talvez, com cara de bobo: ‘Caymmi, eu estou falando com você um negócio e você não está ouvindo’. Eu tinha achado: ‘E assim adormece esse homem, que nunca precisa dormir pra sonhar, porque não há sonho mais lindo do que sua terra não há’. Depois, veio um contestador: ‘Por que não diz sua vida?’. Eu fique entre vida e terra muito tempo, na dúvida. Aí achei que terra abrangia melhor, encorpava melhor, adocicava melhor a coisa, o pé na terra. E aí eu elogiava essa terra toda. Pois bem, isso durou nove anos, tempo que não se sentiu. Tempo não é pra fazer sofrer. Não precisa armar um esquema para trabalhar em cima dele. Tudo nasce espontaneamente. No meu caso, forçado, em geral, não faço. Estimulado, provocado, não sei fazer.”

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  2. Caymmi prossegue o seu relato – um dos mais bonitos e poéticos entre mais de cem entrevistas – oferecendo-nos o segredo da qualidade de suas canções:

    “Depois dessa parada é que eu fui descobrir que esses anos todos não são anos de pesquisas, são de achados. Eu pensava: ‘O que pode acontecer a ele? O que é que pode ser?’. Via uma coisa e não dava. Eu dizia: ‘Esque’. Aí, um ano, um ano e meio... Aliás, no candomblé tem um orixá, que toda religião deve ter um similar, chamado Tempo. Tempo é um negócio assim de alto mistério, tempo pra mim é... o tempo não precisa de relógio, não precisa de medida nem nada. Se você pudesse acompanhar o sol, teria um elemento constante: o tempo. Então, tem um orixá no candomblé chamado Tempo, porque ele rege exatamente esse tempo que significa tudo de que a gente depende. Começa assim: a paz, a ação, o tempo é ligeireza, o tempo é repouso, o tempo é pra dar preguiça. O tempo não é pra passar só. O passar nele é natural. Mas o tempo em si é o tempo quase que indescritível. É o tempo. Então, você vê que eu digo: ‘Tem tempo pra fazer’. Aí eu mesmo me tachei de preguiçoso e achei uma fórmula bonita de não me chatear. Quer dizer: ‘Eu sou preguiçoso assumido, eu tenho uma preguiça extraordinário’. Todos os adereços em torno da palavra preguiça eu uso e abuso.”
    [...]

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  3. [...]
    “Mas isso eu estou debaixo de muita estrela, aquele areal todo, aquela fresca da noite, aquelas meninas, aquela coisa toda, aquele cheiro. E aí: ‘É quando se ouve mais forte o ronco das ondas na beira do mar, é quando o cansaço da lida da vida...’. Aí vem a repetição: ‘É quando o cansaço da lida da vida obriga João se sentar. É quando a morena se encolhe, se chega pro lado querendo agradar. Se a noite é de lua, a vontade é contar mentiras, é se espreguiçar, deitar na areia da praia, que acaba onde a vista não pode alcançar’. Quando eu fiz ‘deitar BA areia da praia’... Deitar na areia da praia é gostoso, não é? Aí parei.”

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  4. Processo interior
    (O Mar e o Tempo, parte III (1947-1956), capítulo 32, pág. 305-310, Stella Caymmi, editora 34, 2001)

    [...]
    “Eu levei realmente nove anos para fazer ‘João Valentão’. Apareceu a personagem: uma pessoa querida, um pescador – eu nunca soube o nome dele -, com apelido de Carapeba, nome de peixe. Era aquele núcleo de Itapuã. Quando eu fiz ‘João Valentão’, fiz primeiro ‘João Carapeba’. Aí fiz uma cena teatral de brincadeira comigo mesmo: cai o Carapeba assim do céu, lá de cima Ploc! Ele era musculoso, não era galã, era o pai do Aurelino, que era pescador, com quem eu me dava por causa da idade. Carapeba era um ídolo pra mim. Aí baixou: ‘João Valentão é brigão, pra dar bofetão’...”
    [...]
    “Eu vi uma vez ele sair do barco e me convidando para sair às 5 da manhã e voltar às 5 da tarde. Eu falei assim: ‘Ah! Não dá. Passar o dia todo lá fora!’. Eu tinha medo de perder o dia com os amigos de veraneio. No fim do dia ele me disse: ‘Dorival, você me disse que ia lá às 5 da manhã e não foi, pra gente sair pra pescar, você disse que ia’. ‘Ih! Ele tá arretado comigo!’ Então, os meninos: ‘Que homem desbocado!’. Aí, fiz o tipo que estava dentro de mim, passei pra ele um pouco de mim, botei aquela figura: ‘João Valentão é brigão, pra dar bofetão não presta atenção e nem pensa na vida, a todos João intimida, faz coisas que até Deus duvida, mas tem seu momento na vida’, fazendo essas frases espontaneamente. Aí para e: ‘É quando o sol vai quebrando lá pro fim do mundo pra noite chegar...’.”

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  5. Kadu, os seus comentários constituem um artigo a parte, aliás, belíssimo. Obrigado pela sua brilhante contribuição ao assunto. Obrigado também pela pontualidade da referência, assim podemos procurar as fontes.
    Grande abraço!

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